domingo, 24 de maio de 2015

Morro do Eucalipto

Lembro-me do meu avô Bené, ou Mião, como alguns o chamavam, me arremessando pro alto de forma que minha cabeça quase batia na lâmpada incandescente e fraca da varanda de piso vermelhão da casa dele. O telhado de telha de barro, vermelho também. As pegadas no capacho da entrada da casa, também vermelhas, também do barro que cobria a Rua Antônio Pereira que eu nunca soube se tem ou não o Carvalho no nome. Acho justo que, pelo menos nosso morro não tivesse este último nome, porque Carvalho, apesar de ser uma árvore linda, não tinha nada a ver com a digital do local. Aqui sempre foi o Morro do Eucalipto. Um grande e imponente deus devorador de pipas entre a Amadeu Lara e a DEP. Andrade Figueira.   Era um verdadeiro cemitério de piões, orelhinhas, carrapetas, batatinhas, charutos e arraias de todas as cores possíveis. Não havia mirolha na marimba que pudesse desprender qualquer uma das pipas que lá ficavam. Media uns vinte metros de muitos galhos e poucas folhas. Era a silhueta mais bonita de todas as manhãs que nasciam e que contraditoriamente, também revelavam os corpos ao pé do nosso guardião. O sangue já não podia ser disfarçado pelo barro vermelho de outrora, pois o calçamento chegou, primeiro paralelepípedo, depois o asfalto.

-onde você mora? Eu respondia sem medo:
-Morro do Eucalipto!

Hoje não consigo responder com menos de dez palavras, muitos dedos de seta e dois pontos de referência, no mínimo. O nosso deus morreu na inversa proporção que fomos crescendo e os muleques que renderam a mim, Walcirley, Dionísio, Buiú, Bodin, Fofão, Uíque - sim, Uíque-, Junin, Wilson Cabeção, Feijão, Wagner e Marcelino não tiveram suas pipas presas lá.
É estranho passar ali e me ver correndo contra o vento colocando qualquer catreco tremendo com o cabresto no meio e colado com arroz, no alto.

É estranho ainda sentir meu dedão esfolando no asfalto jogando golzinho.

É muito estranha a sensação de perder o chão ao cair no matagal da chácara domingo de manhã pra pegar um balão com "Mãe" escrito na bandeira.

Tudo isso me causa uma estranheza danada e a certeza de que toda essa mulecada morreu um pouco junto com aqueles galhos. Fomos sepultados juntos com todos os esqueletos das pipas que tombaram junto com nosso guardião.
Hoje somos a avareza dos dias modernos e lembrar disso, é a tristeza que me faz feliz. Meu morro fantasma.

-guarnier.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Quebrete


Depois da chuva, silhuetas secas na calçada denunciavam a precariedade daquele local. Contavam-se três adultos e meia dúzia de palmos de gente que ali brincavam embaixo das caixas de papelão, protegidos do frio. Dentre eles estava Jorge, o mais franzino dos cinco irmãos e um agregado. Sempre perdia na disputa pela comida que, pouca e já não muito boa, não bastava para toda a família e um agregado, que havia juntado-se aos miseráveis porque se perdeu da mãe, ou a mãe se perdeu dele. Ou ainda, a mãe perdida perdeu o filho que desejara ter perdido antes que nascesse, mas que sobreviveu a alguns golpes, goles e tudo mais. Poderia ter tido a sorte de ser achado por qualquer outra pessoa, até um assistente social serviria. Contentou-se com a família de Jorge, que não interessa dizer o nome, porque são mais uns dos tantos indigentes que deixam suas silhuetas nas calçadas quando amanhece.
Jorge merece ser chamado de Jorge, senão não apareceria aqui, ora! Desnecessário dizer que seu nome é em homenagem a São Jorge, matador, mutilador, destemido guerreiro que destruía dragões. É o que dizem. Mas, como o que vale é o senso comum, Jorge era foda! O santo, lógico. Porque Jorge, o gente, pessoa, menino, homem era fodido de nascença! Vocês percebem? Pois é! Mas não é que, contrariando todas as estatísticas do I.B.G.E. e da minha avó, Jorge fez juízo ao nome e conseguiu sim? Tornou-se poderoso, ganhou até um apelido de respeito, ou de responsa como quiserem. Agora se chama Jorginho Quebrete, Quebrete pros íntimos. Não tem uma alma em sã consciência que ouça esse nome e não faça uma dúzia de sinais da cruz e diga: “Misericórdia Deus Pai Maria José!” - Já se apressando pra dentro de casa, que é lugar de gente direita.
Contam que numa noite dessas, uns desocupados bebiam fazendo uma baita bagunça no pé do morro e então Jorge chegou. Não perguntou se tinham família, cachorro ou dinheiro, passou todos eles. O dono da birosca, apavorado, ficou paralisado, tremendo e, já com um mau cheiro que vinha de baixo, saiu de fininho pedindo licença pra não espalhar a merda. Até hoje não fala nada, seu rosto desde então é deformado. A boca murchou, os olhos saltaram. Esse também ganhou um apelido, Zé do Zóigrande, ele é importante no morro, celebridade, vai se candidatar e dizem por aí que vai ganhar, porque quem fala muito faz pouco e, como o Zé não fala mais...
Mas, vamos começar do começo, do início, da procedência desse rapaz, que nordestino chama de cabra macho, moleque do morro de sinistro, mulher paraibana de “retado” e polícia de parceiro. Eu só chamo de Jorge mesmo. Chamo assim porque conheci, vi pequeno, na rua, humilhado dormindo na calçada. Jorginho era magrelo, mas sempre foi marrento, roubava a comida de algum irmão, corria e não dava pra pegar o guri até que ele comesse tudo. Depois ele apanhava, é claro. Mas, apanhar de barriga cheia não era mau negócio. Um dia parou um ônibus e obrigou a família de miseráveis do Jorginho a subir. O ônibus os levou - depois de muita porrada - para um abrigo, e finalmente a magreza do menino serviu pra alguma coisa: quando os homens desceram, ele entrou num bueiro e ficou lá até ser mordido por um bicho que, segundo ele me disse, até hoje não sabe o que foi. Já do lado de fora, não encontrou ninguém, só a antiga sensação de solidão num mundo gigante, que ele já tirava de letra. Mas, de verdade, nunca havia ficado tão só.
Perambulando pelo Engenho Novo, ouviu um pandeiro sendo surrado por alguém e foi conferir, achando ser alguma roda de samba, onde ele sempre beliscava uns restos de petiscos e até bebia os goles de cerveja que ficavam nas latinhas. Andou alguns metros e quando percebeu que era uma igreja, já era tarde demais, uma senhora enrolada num lençol até o pescoço, puxou Jorginho pelo braço, dizendo que se ele aceitasse ao Nosso Senhor, Rei dos Judeus, Jesus Cristo de Nazaré, filho do Homem, ele nunca mais passaria fome na vida. Ele perguntou se ia achar a família dele, a mulher disse que sim, ele perguntou se ia ficar sozinho na rua, a mulher disse que não, então ele perguntou se teria que ir para a escola, a mulher, puta da vida, porque crente também fica puto da vida, respondeu que sim, não contente, Jorginho perguntou: “O quê que eu ganho com isso, minha tia?” A mulher respondeu: “Dois real só pra encher mais os banco da igreja meu filho! Ajuda nóis que nóis tá precisano!”.
Quem diria? De menino de rua, não é que o moleque conseguiu um trampo de garçom de santa ceia? Todos os últimos domingos de cada mês, às nove horas e trinta minutos, com uma penca de pedacinhos de pão e outra penca de cálices de suco de uva numa bandeja, Jorginho desfilava pelo corredor central do cômodo de cinco metros quadrados, localizado no bairro do Engenho Novo, Rio de Janeiro, Brasil. Claro que só poderia ser no Brasil! Servia de um em um todos os fiéis da prosperante Igreja não sei de quê dos Últimos Dias. Dizem até que o acidente que matou todas aquelas pessoas dentro da igreja, quando um ônibus de uma dessas linhas que têm no Rio, CENTRAL via RESTO DO MUNDO X CASCADURA invadiu o templo, foi justamente por causa da inscrição “dos Últimos Dias”, vocês sabem que isso puxa coisa ruim. Pros crentes, quem morreu foi arrebatado e tudo certo, tipo, uma queima de arquivo religiosa, sabe?
Sorte do Quebrete, que ainda não era quebrador, mas tinha sido expulso da igreja pelo pastor daquela congregação, porque quebrou a filhinha imaculada dele. (Ele não a matou, pelo amor de Deus, Jorginho nunca matou mulher, pelo menos as bonitas não. Ele só quebrou! Entende? Ele servia a santa ceia... Ela aceitava... Ele servia... Ela sorria... Ele sorria... Ela correspondia... Até que ele cansou de só servir... E ela cansou de só comer. Aí... Morreu Odete, deu no que deu, ou quem deu, sei lá! O que eu sei, é que o pastor entrou e viu o menino virando os olhos, e sabe como é crente, né? O coroa achou que algum demônio tinha entrado no menino, mas quando viu de perto, quem tava recebendo o cajado do preto velho era a filha dele, aí... Aí... É isso!).
O que dizer neste momento? Uma injustiça tremenda com o menino. Mas, vida que segue! E, seguindo pelas vielas da C-I-D-A-D-E M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-A S-A-L-V-E-S-A-L-V-E-S-E quem puder, Jorge tentava sobreviver às adversidades que encontrava. Um dia com fome e outro também, de vez em quando encontrava uma diretora gente boa que deixava ele pegar a merenda numa escola – isso porque o moleque, apesar de magro e feio, era carismático. Moedinha não passava em branco na sua mão, sempre com um sorriso elástico de orelha a orelha, conquistava qualquer madame, quando não com uma ajuda na porta do mercado, fazia a gentileza de recolher o cocô dos cachorrinhos em seus passeios matinais com suas donas. Assim o menino Jorge levou dos doze aos quinze, dormindo sob as marquises dos supermercados ou prédios suntuosos do Rio de Janeiro. E numa dessas manhãs, em que você olha pro céu e diz: “Porra! Hoje é o meu dia!”, eis que a sorte sorriu para Jorge: o dono do mercado perguntou se ele queria trabalhar lá como entregador de compra. Explicou que era um serviço pesado, que ele precisaria estar bem vestido e sempre de bom humor e boa vontade. Jorginho explicou que vivia na rua, que não tinha documentos, não tinha casa e nem nome, porque sua família morava na rua quando ele nasceu e trálálá. Mas aquele era mesmo o dia de sorte do moleque, o magnata lá falou que se ele se comprometesse e fosse honesto, não tinha problema, ele poderia até dormir e comer no mercado e um monte de coisas boas.
Resultado que passado três meses, desde o dia em que isso aconteceu, Jorge já tinha documentos, como não sabia seu sobrenome, puseram Jorge da Silva - afinal, mais um ou menos um Silva não importava, tinha respeito e até uma namoradinha. Uma mulatinha da limpeza que parecia um liquidificador quando sambava. Chamava Flor de Lis, sorriso tão elástico quanto o dele, carisma de porta-bandeira, carregava a força da miscigenação nos punhos fortes de mulher frágil, gostava de Jorginho, por vezes chamava ele de “guardião do meu jardim”. Frequentavam todas as rodas de samba desde a Lapa até o Chapéu Mangueira. Pretendiam se casar, ter filhos, netos. Levá-los para a escola, para a praia, ajudar no dever de casa, tudo aquilo que eles viam as pessoas “normais”, com suas vidas “normais” fazerem, eles queriam fazer igual.
As coisas corriam bem, Jorge conheceu a família de Flor, e a família de Flor adorou Jorge, porque eram devotos do santo que inspirou seu nome. Diziam que não importava a procedência do rapaz, que só pelo nome ele já inspirava confiança e faria a menina feliz. Conversaram com um padre que concordou em realizar a cerimônia num salão de festas no morro. O povo todo empolgado com o casório: a vizinhança gostava de Jorge, organizavam mutirões para erguer a pequena, mas digna casa de dois cômodos para o casal, um comerciante local prometeu parcelar a venda de uma parte do seu quintal para que, posteriormente, com a chegada de um filho, Jorge construísse um quartinho. Ele não sabia, mas era um homem honesto, trabalhador e confiável e já estava há dois anos no emprego - que já não era de entregador, ele agora coordenava os outros meninos que havia recrutado da rua nas entregas pelo Engenho Novo, afinal, ele conhecia aquele local de olhos vendados.
Tudo corria muito bem, o casamento iria acontecer no dia de São Jorge, vinte e três de abril de um ano que eu não gosto de lembrar. A capela doou as flores, o padre doou o terno, o vestido de noiva era o da mãe de Flor de Lis, a festa estava garantida porque o Zé da Birosca parcelou em dez vezes, cinco caixas de cerveja e três de refrigerante (tinha menos refrigerante porque contém muito açúcar e açúcar demais faz mal a saúde). O casal convidou todos os amigos do trabalho e também o dono, que prometeu ir à festa, seria uma honra sem proporções para Jorge e Flor. Na véspera do acontecimento, os dois ganharam folga e foram comprar as últimas coisas. Jorge foi até o Andaraí, pois sabia que lá tinha uma senhora que fazia uns salgadinhos deliciosos e baratos. Devido à maré de felicidade, não se admirou quando ela lhe ofereceu mais um tanto de graça quando soube que ele se casaria, Jorge ainda sentou e tomou um café com um senhor, que apesar de doente, estava muito empolgado aquela tarde, pois seu time do coração, o América, disputaria uma final de campeonato em anos. Jorge recebeu os salgados e, muito satisfeito, pagou o que tinha no bolso e saiu. Flor foi para o Saara comprar badulaques que seriam dados como lembrança e também foi agraciada com promoções e votos de felicidades. 
O enlace deste casal, formado por uma menina da favela e um sobrevivente das ruas, não iria ter foto nos jornais, não era uma acontecimento social de relevância regional nem tampouco nacional. As pessoas não ficariam admirando as fotos de uma faxineira vestida de noiva e um entregador de compras do Engenho Novo, nas primeiras páginas. A vida dessas pessoas não interessa a ninguém, a não ser a eles mesmos. Isso tanto é verdade, que nesse momento, em que você deve estar deitado numa rede na varanda da sua casa, ou sentado na praça, ou até mesmo num ambiente intelectual, desses que nem tenho a coragem de citar aqui, porque seria muita falta de coerência, um casamento entre uma Flor de Lis e um dos tantos Jorges da Silva pode estar acontecendo. Só gostaria de saber, se por acaso, aquele vestido de noiva não estivesse sujo de sangue ele estaria nessa revista que você lê agora, ou na capa do jornal. Ou no telejornal da tarde, da noite? Entendam que vocês só tomaram conhecimento disso, porque não aconteceu! Isso mesmo! Jorge da Silva e Flor de Lis não se casaram porque ela morreu, senhores. Não reconhecem aquele rapaz franzino ali do lado daquele pano branco sujo de vermelho? Vocês sabiam que tem gente de roupa de banho, curtindo um sol que é responsável por isso. Que eu, você e tantos outros que dormem, trabalham e moram num ambiente em que a temperatura máxima deve ser de uns vinte graus, somos responsáveis por aquele calor desgraçado que é a vida nas ruas desse país? Que aquela arma que mata as Flores dos Jorges que não são santos, por isso humanos como vocês, podem ter sido compradas com o dinheiro da sua taxa de esgoto, ou do seu imposto de renda e você ainda assim não se convence de que isso, também não é culpa sua? Então responda quem é que foi às urnas exercer o precioso ato democrático de votar sem nem se preocupar em quem? Dane-se se o tiro saiu da arma do bandido ou da polícia, o que interessa é que saiu, e por enquanto, diretamente ou indiretamente, não acertou você. Agora entendem o porquê de Jorge Quebrete? Podem dizer: “Ah! Isso não era motivo!”. O que é motivo então? Expliquem!

-guarnier
Onomatopeia, 2014, CBJE


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015


Chamam minha terra de "sem lei",
Mas quem fala isso mente,
E que a mesma lei
Que tem nas capitais,
Aqui aplicam de forma diferente

Lá ficham usuários de quilos,
Aqui inventam traficantes de gramas
Flagrantes cabem nos sapatos
Sujos com nossa lama
E baseado é fato embasado
Mesmo sendo
Tudo o mesmo mato...
Aqui:
Matam a seco
Queimam a roupa
Tocam fogo
Apagam
À sangue frio
E nossos corpos
Boiam nessa margem.

Porque na Lapa
Até de madrugada é boêmio,
E aqui na esquina de casa
Até às vinteuma bandidagem?

Lá,
Gravata de carro nem abaixa o vidro
Olha a blitz de longe
E passa batido...
Aqui,
De boné e carro é suspeito
Abaixa o vidro
Acende a luz
E leva tiro no peito.

Farda lá é sinônimo de proteção,
Aqui é de medo.
Por ser morto
Num forjado auto de infração.

Tem ditados que não servem pra nós
Porque na verdade
Não tem leão na periferia
Acho que é por isso
Que aqui
Matam um herói por dia.

-sobre constatações
-guarnier

domingo, 18 de janeiro de 2015

Li um caderno antigo
Da minha adolescência
Tinham tantos "sempres"
E os meios
Não justificaram
Os fins

-guarnier

Subi no telhado
Pra extinguir uma megalomania
Em pensar que não sou
Só mais um inseto,
Que se até o presente
É uma caixa com laço vermelho frouxo
Que dirá o futuro incerto.
Nessas incertezas
Vou me equilibrando
E colecionando horas de relógios,
Tempos diferentes
E entendendo
Que para coisas caminharem
As vezes é necessário
Ser ampulheta
E sambar plantando bananeira
Na cara dos dias.

-constatações
-guarnier

sábado, 17 de janeiro de 2015

Acusam  jovens de "sem vergonhas"...
Eu nunca vi vergonha fazer revolução!

-sobre beijaços, purpurinas e aço!
-guarnier