Depois da chuva,
silhuetas secas na calçada denunciavam a precariedade daquele local.
Contavam-se três adultos e meia dúzia de palmos de gente que ali brincavam
embaixo das caixas de papelão, protegidos do frio. Dentre eles estava Jorge, o
mais franzino dos cinco irmãos e um agregado. Sempre perdia na disputa pela comida
que, pouca e já não muito boa, não bastava para toda a família e um agregado,
que havia juntado-se aos miseráveis porque se perdeu da mãe, ou a mãe se perdeu
dele. Ou ainda, a mãe perdida perdeu o filho que desejara ter perdido antes que
nascesse, mas que sobreviveu a alguns golpes, goles e tudo mais. Poderia ter
tido a sorte de ser achado por qualquer outra pessoa, até um assistente social
serviria. Contentou-se com a família de Jorge, que não interessa dizer o nome,
porque são mais uns dos tantos indigentes que deixam suas silhuetas nas
calçadas quando amanhece.
Jorge merece ser chamado
de Jorge, senão não apareceria aqui, ora! Desnecessário dizer que seu nome é em
homenagem a São Jorge, matador, mutilador, destemido guerreiro que destruía
dragões. É o que dizem. Mas, como o que vale é o senso comum, Jorge era foda! O
santo, lógico. Porque Jorge, o gente, pessoa, menino, homem era fodido de
nascença! Vocês percebem? Pois é! Mas não é que, contrariando todas as
estatísticas do I.B.G.E. e da minha avó, Jorge fez juízo ao nome e conseguiu
sim? Tornou-se poderoso, ganhou até um apelido de respeito, ou de responsa como
quiserem. Agora se chama Jorginho Quebrete, Quebrete pros íntimos. Não tem uma
alma em sã consciência que ouça esse nome e não faça uma dúzia de sinais da
cruz e diga: “Misericórdia Deus Pai Maria José!” - Já se apressando pra dentro
de casa, que é lugar de gente direita.
Contam que numa noite
dessas, uns desocupados bebiam fazendo uma baita bagunça no pé do morro e então
Jorge chegou. Não perguntou se tinham família, cachorro ou dinheiro, passou
todos eles. O dono da birosca, apavorado, ficou paralisado, tremendo e, já com
um mau cheiro que vinha de baixo, saiu de fininho pedindo licença pra não
espalhar a merda. Até hoje não fala nada, seu rosto desde então é deformado. A
boca murchou, os olhos saltaram. Esse também ganhou um apelido, Zé do
Zóigrande, ele é importante no morro, celebridade, vai se candidatar e dizem
por aí que vai ganhar, porque quem fala muito faz pouco e, como o Zé não fala mais...
Mas, vamos começar do
começo, do início, da procedência desse rapaz, que nordestino chama de cabra
macho, moleque do morro de sinistro, mulher paraibana de “retado” e polícia de
parceiro. Eu só chamo de Jorge mesmo. Chamo assim porque conheci, vi pequeno,
na rua, humilhado dormindo na calçada. Jorginho era magrelo, mas sempre foi
marrento, roubava a comida de algum irmão, corria e não dava pra pegar o guri
até que ele comesse tudo. Depois ele apanhava, é claro. Mas, apanhar de barriga
cheia não era mau negócio. Um dia parou um ônibus e obrigou a família de
miseráveis do Jorginho a subir. O ônibus os levou - depois de muita porrada -
para um abrigo, e finalmente a magreza do menino serviu pra alguma coisa:
quando os homens desceram, ele entrou num bueiro e ficou lá até ser mordido por
um bicho que, segundo ele me disse, até hoje não sabe o que foi. Já do lado de
fora, não encontrou ninguém, só a antiga sensação de solidão num mundo gigante,
que ele já tirava de letra. Mas, de verdade, nunca havia ficado tão só.
Perambulando pelo Engenho
Novo, ouviu um pandeiro sendo surrado por alguém e foi conferir, achando ser
alguma roda de samba, onde ele sempre beliscava uns restos de petiscos e até
bebia os goles de cerveja que ficavam nas latinhas. Andou alguns metros e
quando percebeu que era uma igreja, já era tarde demais, uma senhora enrolada
num lençol até o pescoço, puxou Jorginho pelo braço, dizendo que se ele
aceitasse ao Nosso Senhor, Rei dos Judeus, Jesus Cristo de Nazaré, filho do
Homem, ele nunca mais passaria fome na vida. Ele perguntou se ia achar a
família dele, a mulher disse que sim, ele perguntou se ia ficar sozinho na rua,
a mulher disse que não, então ele perguntou se teria que ir para a escola, a
mulher, puta da vida, porque crente também fica puto da vida, respondeu que
sim, não contente, Jorginho perguntou: “O quê que eu ganho com isso, minha
tia?” A mulher respondeu: “Dois real só pra encher mais os banco da igreja meu
filho! Ajuda nóis que nóis tá precisano!”.
Quem diria? De menino de
rua, não é que o moleque conseguiu um trampo de garçom de santa ceia? Todos os
últimos domingos de cada mês, às nove horas e trinta minutos, com uma penca de
pedacinhos de pão e outra penca de cálices de suco de uva numa bandeja,
Jorginho desfilava pelo corredor central do cômodo de cinco metros quadrados,
localizado no bairro do Engenho Novo, Rio de Janeiro, Brasil. Claro que só
poderia ser no Brasil! Servia de um em um todos os fiéis da prosperante Igreja
não sei de quê dos Últimos Dias. Dizem até que o acidente que matou todas
aquelas pessoas dentro da igreja, quando um ônibus de uma dessas linhas que têm
no Rio, CENTRAL via RESTO DO MUNDO X CASCADURA invadiu o templo, foi justamente
por causa da inscrição “dos Últimos Dias”, vocês sabem que isso puxa coisa ruim.
Pros crentes, quem morreu foi arrebatado e tudo certo, tipo, uma queima de
arquivo religiosa, sabe?
Sorte do Quebrete, que
ainda não era quebrador, mas tinha sido expulso da igreja pelo pastor daquela
congregação, porque quebrou a filhinha imaculada dele. (Ele não a matou, pelo
amor de Deus, Jorginho nunca matou mulher, pelo menos as bonitas não. Ele só
quebrou! Entende? Ele servia a santa ceia... Ela aceitava... Ele servia... Ela
sorria... Ele sorria... Ela correspondia... Até que ele cansou de só servir... E
ela cansou de só comer. Aí... Morreu Odete, deu no que deu, ou quem deu, sei
lá! O que eu sei, é que o pastor entrou e viu o menino virando os olhos, e sabe
como é crente, né? O coroa achou que algum demônio tinha entrado no menino, mas
quando viu de perto, quem tava recebendo o cajado do preto velho era a filha
dele, aí... Aí... É isso!).
O que dizer neste
momento? Uma injustiça tremenda com o menino. Mas, vida que segue! E, seguindo
pelas vielas da C-I-D-A-D-E M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-A S-A-L-V-E-S-A-L-V-E-S-E quem
puder, Jorge tentava sobreviver às adversidades que encontrava. Um dia com fome
e outro também, de vez em quando encontrava uma diretora gente boa que deixava
ele pegar a merenda numa escola – isso porque o moleque, apesar de magro e
feio, era carismático. Moedinha não passava em branco na sua mão, sempre com um
sorriso elástico de orelha a orelha, conquistava qualquer madame, quando não
com uma ajuda na porta do mercado, fazia a gentileza de recolher o cocô dos
cachorrinhos em seus passeios matinais com suas donas. Assim o menino Jorge
levou dos doze aos quinze, dormindo sob as marquises dos supermercados ou prédios
suntuosos do Rio de Janeiro. E numa dessas manhãs, em que você olha pro céu e
diz: “Porra! Hoje é o meu dia!”, eis que a sorte sorriu para Jorge: o dono do
mercado perguntou se ele queria trabalhar lá como entregador de compra.
Explicou que era um serviço pesado, que ele precisaria estar bem vestido e
sempre de bom humor e boa vontade. Jorginho explicou que vivia na rua, que não
tinha documentos, não tinha casa e nem nome, porque sua família morava na rua
quando ele nasceu e trálálá. Mas aquele era mesmo o dia de sorte do moleque, o
magnata lá falou que se ele se comprometesse e fosse honesto, não tinha
problema, ele poderia até dormir e comer no mercado e um monte de coisas boas.
Resultado que passado
três meses, desde o dia em que isso aconteceu, Jorge já tinha documentos, como
não sabia seu sobrenome, puseram Jorge da Silva - afinal, mais um ou menos um Silva
não importava, tinha respeito e até uma namoradinha. Uma mulatinha da limpeza
que parecia um liquidificador quando sambava. Chamava Flor de Lis, sorriso tão
elástico quanto o dele, carisma de porta-bandeira, carregava a força da
miscigenação nos punhos fortes de mulher frágil, gostava de Jorginho, por vezes
chamava ele de “guardião do meu jardim”. Frequentavam todas as rodas de samba
desde a Lapa até o Chapéu Mangueira. Pretendiam se casar, ter filhos, netos.
Levá-los para a escola, para a praia, ajudar no dever de casa, tudo aquilo que
eles viam as pessoas “normais”, com suas vidas “normais” fazerem, eles queriam
fazer igual.
As coisas corriam bem,
Jorge conheceu a família de Flor, e a família de Flor adorou Jorge, porque eram
devotos do santo que inspirou seu nome. Diziam que não importava a procedência
do rapaz, que só pelo nome ele já inspirava confiança e faria a menina feliz.
Conversaram com um padre que concordou em realizar a cerimônia num salão de
festas no morro. O povo todo empolgado com o casório: a vizinhança gostava de Jorge,
organizavam mutirões para erguer a pequena, mas digna casa de dois cômodos para
o casal, um comerciante local prometeu parcelar a venda de uma parte do seu
quintal para que, posteriormente, com a chegada de um filho, Jorge construísse
um quartinho. Ele não sabia, mas era um homem honesto, trabalhador e confiável
e já estava há dois anos no emprego - que já não era de entregador, ele agora
coordenava os outros meninos que havia recrutado da rua nas entregas pelo
Engenho Novo, afinal, ele conhecia aquele local de olhos vendados.
Tudo corria muito bem, o
casamento iria acontecer no dia de São Jorge, vinte e três de abril de um ano
que eu não gosto de lembrar. A capela doou as flores, o padre doou o terno, o
vestido de noiva era o da mãe de Flor de Lis, a festa estava garantida porque o
Zé da Birosca parcelou em dez vezes, cinco caixas de cerveja e três de
refrigerante (tinha menos refrigerante porque contém muito açúcar e açúcar
demais faz mal a saúde). O casal convidou todos os amigos do trabalho e também o
dono, que prometeu ir à festa, seria uma honra sem proporções para Jorge e
Flor. Na véspera do acontecimento, os dois ganharam folga e foram comprar as
últimas coisas. Jorge foi até o Andaraí, pois sabia que lá tinha uma senhora
que fazia uns salgadinhos deliciosos e baratos. Devido à maré de felicidade,
não se admirou quando ela lhe ofereceu mais um tanto de graça quando soube que
ele se casaria, Jorge ainda sentou e tomou um café com um senhor, que apesar de
doente, estava muito empolgado aquela tarde, pois seu time do coração, o
América, disputaria uma final de campeonato em anos. Jorge recebeu os salgados
e, muito satisfeito, pagou o que tinha no bolso e saiu. Flor foi para o Saara
comprar badulaques que seriam dados como lembrança e também foi agraciada com
promoções e votos de felicidades.
O enlace deste casal,
formado por uma menina da favela e um sobrevivente das ruas, não iria ter foto
nos jornais, não era uma acontecimento social de relevância regional nem
tampouco nacional. As pessoas não ficariam admirando as fotos de uma faxineira
vestida de noiva e um entregador de compras do Engenho Novo, nas primeiras
páginas. A vida dessas pessoas não interessa a ninguém, a não ser a eles
mesmos. Isso tanto é verdade, que nesse momento, em que você deve estar deitado
numa rede na varanda da sua casa, ou sentado na praça, ou até mesmo num
ambiente intelectual, desses que nem tenho a coragem de citar aqui, porque
seria muita falta de coerência, um casamento entre uma Flor de Lis e um dos
tantos Jorges da Silva pode estar acontecendo. Só gostaria de saber, se por
acaso, aquele vestido de noiva não estivesse sujo de sangue ele estaria nessa
revista que você lê agora, ou na capa do jornal. Ou no telejornal da tarde, da
noite? Entendam que vocês só tomaram conhecimento disso, porque não aconteceu!
Isso mesmo! Jorge da Silva e Flor de Lis não se casaram porque ela morreu,
senhores. Não reconhecem aquele rapaz franzino ali do lado daquele pano branco
sujo de vermelho? Vocês sabiam que tem gente de roupa de banho, curtindo um sol
que é responsável por isso. Que eu, você e tantos outros que dormem, trabalham
e moram num ambiente em que a temperatura máxima deve ser de uns vinte graus,
somos responsáveis por aquele calor desgraçado que é a vida nas ruas desse
país? Que aquela arma que mata as Flores dos Jorges que não são santos, por
isso humanos como vocês, podem ter sido compradas com o dinheiro da sua taxa de
esgoto, ou do seu imposto de renda e você ainda assim não se convence de que
isso, também não é culpa sua? Então responda quem é que foi às urnas exercer o
precioso ato democrático de votar sem nem se preocupar em quem? Dane-se se o tiro
saiu da arma do bandido ou da polícia, o que interessa é que saiu, e por
enquanto, diretamente ou indiretamente, não acertou você. Agora entendem o
porquê de Jorge Quebrete? Podem dizer: “Ah! Isso não era motivo!”. O que é
motivo então? Expliquem!
-guarnier
Onomatopeia, 2014, CBJE